domingo, 7 de janeiro de 2007

A Tradição Oral
Lá fora está frio. Apetece estar em casa. A lareira acesa, as torradas, o chá e...uma história. Mas não apetece ler, até porque só deixamos acesas as luzes da lareira. Era preciso alguém que nos contasse uma história...
Hoje não vamos falar de ninguém em particular. Fazemos, então, homenagem àquele conjunto de textos que foi passando de geração em geração muitas vezes pela boca dos avós.
Desde sempre que o homem conta histórias. A narrativa é universal e exprime-se de muitas maneiras: pela linguagem oral e escrita, pela imagem e gestos e pela mistura destes processos. Roland Barthes escreve: (A narrativa) “está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, no quadro pintado, no vitral, no cinema, nos filmes cómicos, nos faits-divers, na conversação. Sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa a história da humanidade; não há, nunca houve em nenhum lugar, um povo sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm as suas narrativas.”
E mesmo antes da escrita se contavam histórias. Aliás, essa era a única via de transmissão dos valores culturais. É todo um universo político, social, familiar que povoa os textos da tradição oral, exibindo os conflitos e os fantasmas que os provocam. Os ouvintes (ou leitores) deste tipo de textos revêem os seus problemas nos problemas das personagens. Esses textos são também portadores das normas sociais em vigor. Segundo as normas das sociedades mais antigas, tudo se organiza em dois pólos antagónicos: o Bem e o Mal, Deus e o Diabo. Ao ouvirem as histórias onde o Bem luta com o Mal e vence, os ouvintes ganham ânimo para as agruras da sua vida. Em muitos desses textos está a explicação dos mistérios da vida, das preocupações humanas. A sua audição ou leitura ajuda-nos, muitas vezes, a perceber o dia-a-dia.
Deixamos, para meditar, um texto de Hesíodo, poeta da Antiguidade Clássica:

O mito de Pandora

Dantes vivia sobre a terra a raça humana,
livre da desgraça e do penoso trabalho,
e das doenças horríveis, que trazem a morte aos homens.
Mas, a mulher, com as suas mãos, ergueu a grande tampa da vasilha
e dispersou-os, preparando à humanidade funestos cuidados.
Dentro da vasilha, na morada indestrutível,
abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperança. Essa
não se evolou. Antes, já ela tornara a colocar a tampa,
por desígnios de Zeus detentor da égide, que amontoava as nuvens.
Mas tristezas aos centos erram entre os homens.
Cheia está a terra de desgraças, cheias os mares.
As doenças, umas de dia, outras de noite,
visitam à vontade os homens, trazendo aos mortais
o mal, em silêncio, pois Zeus prudente lhes retirou a voz.
E assim não há maneira de evitar os desígnios de Zeus.

(Os Trabalhos e dos Dias, 90 – 105)

5 comentários:

Nilson Barcelli disse...

O Homem será então uma espécie de animal narrador?
Os desígnios de Zeus fizeram-me lembrar dos desígnios de Deus.
E o nosso desígnio? Convém que não se confine à lareira...
Um beijo.

Rosalina Simão Nunes disse...

hummm...nilson, confundir zeus com Deus...será pecado?!

ehehehhehe...

mas à lareira sabe tão bem...e, quando ela não existe, olha, inventa-se uma. ;)

Rosalina Simão Nunes disse...

?!...qual denominação, harry?

desculpa, mas não percebi. :)

Rosalina Simão Nunes disse...

ah...já percebi, harry. de facto não há referência ao romance.

da minha parte propositadamente. :)

em relação Roland Barthes, que cito, não sei. teria de ir à origem. ainda estive para ir fazer isso. poderá ter sido uma falha minha ao transcrever.

mas por outro lado, provavelmente, há coerência no facto de não se fazer referência ao género narrativo por excelência, creio que partilhas dessa opinião - o romance.

repara que o texto é sobre a tradição oral. todos os exemplos provêm daí. aqueles que já são fruto de autores, repara, têm uma componente coloquial, onde o diálogo será o modo de expressão mais usado, muito forte. e a intenção do texto era essa. informar sobre a riqueza da voz dos tempos.

mas se calhar até tens razão.

Rosalina Simão Nunes disse...

ah...julguei que te reportasses ao facto de não haver referência ao romance, no texto.

sim. tens razão.

eu confesso que sempre preferi o conto. mas também é um facto que dos ando sempre a ler, em simultâneo com outros géneros, um romance, que regrar geral, levo mais de um ano a ler. é mesmo para digerir. ;)