quinta-feira, 18 de janeiro de 2007


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por Karen Blixen, in África Minha
(...)Era curioso ver as minhas velhas Kikuyus em camas e lençóis brancos, semelhantes a velhas mulas muito gastas ou qualquer outro animal de carga paciente; elas próprias se riam da situação, mas era um riso amargo, como o de uma mula velha, pois os nativos têm medo de hospitais.
(...)
Os nativos, se não ficam paralisados e emudecidos pelo medo que têm do desconhecido, lamentam-se e resmungam muito no hospital e arquitectam planos para se escaparem. A morte é um dos meios que usam para este fim, pois não a temem. Os europeus que construíram e equiparam os hospitais e que neles trabalham, tendo feito uso de muito esforço para arrastarem até lá os doentes, lamentam-se amargamente que os nativos ignorem o que é a gratidão, não reconhecendo o que se faz por eles.
Para os brancos há algo de vexante e de mortificador neste estado de espírito dos nativos. Na verdade, é indiferente o que se faz por eles; por muito que se faça, aquilo que se faz desaparece e nunca mais se ouve falar disso; não agradecem, mas neles não existe maldade e, mesmo que se queira, nada se pode fazer a este respeito. Trata-se de uma qualidade alarmante, que parece anular a nossa existência como seres humanos e infligir-nos um papel que não escolhemos, como se fôssemos um fenómeno da Natureza, qualquer coisa como o tempo atmosférico.
Neste aspecto, os imigrantes somalis são diferentes dos nativos do país. (...) São maometanos severos e, como todos os maometanos, têm um código moral segundo o qual nos julgam. Com os somalis pode adquirir-se ou destruir-se o prestígio numa hora.
(...)
Mas os kikuyus, os wakambas ou os kavirondos, isentos de preconceitos, não conhecem qualquer espécie de código. Consideram que a maior parte das pessoas são capazes da maior parte das coisas e não se consegue escandalizá-los ainda que se queira. (...) Não nos julgam, mas são observadores perspicazes. A soma das suas observações traduz-se na reputação que granjeamos aos seus olhos, na nosso boa ou má fama.
Nesse sentido, as pessoas muito pobres da Europa são como os kikuyus. Não julgam, mas fazem um somatório do que observam. Quando gostam de uma pessoa, ou por ela sentem estima, é da mesma maneira que amam Deus, não por aquilo que se lhes faz, mas pelo que se é.


2 comentários:

Cristina disse...

sabes, Africa Minha é o meu filme de culto. é muito mais que um filme, como o texto mostra.

e tem uma cena que é a unica no cinema que sempre que revejo não consigo evitar chorar. quando Karen se despede de Denys Finch e lhe lê um texto lindíssimo.:)


beijinho

Rosalina Simão Nunes disse...

que giro, cristina. eu tenho alguma dificuldade em escolher os preferidos seja lá daquilo que for, mas se só me deixassem ver um filme, eu escolheria, sem dúvida este. é, até agora, o único filme que já vi para aí umas 6 vezes e tenho a certeza que voltarei a ver.

no livro, a paixão que se distingue não é aquela que karen partilha com o denys, mas, principalmente, aquela que nutre por áfrica.

serão estes os versos (é que tenho o livro à mão, mas o filme não :p):


Vi gansos cinzentos sobrevoar a planície / Gansos selvagens e vibrantes, lá no alto - / Vagueando de horizonte a horizonte / Com a alma à flor da garganta - / Sua brancura acinzentada cingindo os céus enormes / E os raios de sol sobre as montanhas enrugadas.