domingo, 1 de outubro de 2006

Ama
Que fazes, filho? Vais arruinar os teus amigos?


Hipólito
Desprezo-os. Não é meu amigo quem for injusto.


Ama
Perdoa. Errar é próprio dos mortais, filho.


Hipólito
Ó Zeus, porque infligiste aos homens este terrível flagelo das mulheres, pondo-as à luz do sol?
Se tu querias a espécie humana propagar, não era necessário procurá-lo nas mulheres, mas os mortais nos seus templos colocariam bronze, ferro ou ouro maciço para, em troca, a progénie adquirirem, cada um segundo o valor da sua posição, e habitarem em casa livres de mulheres.
Eis a prova de que a mulher é um grande flagelo: o pai que a gerou e a alimentou, ao introduzi-la noutra família, dá um dote para de um mal se libertar.
Por outro lado, aquele que, em sua casa, recebe esta funesta criatura, compraz-se em colocar belos ornamentos à volta deste perverso ídolo e com peplos ornamenta, o tesouro familiar enfraquecendo pouco a pouco, o infeliz.
O mais cómodo para qualquer um é aquela que nada vale - mas é uma inutilidade, em casa, a mulher de espírito simples.
Odeio a que é sábia: que não haja nunca em minha casa nenhuma que pense mais do que deve uma mulher. Na verdade, é sobretudo nas mulheres cultas que Cípris faz nascer a perversidade; a mulher simples é afastada do desvario pela sua limitada inteligência.
Necessário era que, da mulher, nenhuma serva se aproximasse e, com ela, apenas animais que mordem, privados de voz, coabitassem, para que a ninguém pudesse dirigir a palavra nem, daqueles, som algum recebessem.
Mas, pelo contrário, iníquios projectos, [feitos no interior, por perversas mulheres], levam-nos as servas para fora.
(voltando-se para a Ama)
Assim, tu vieste, ó ser desprezível, com o inviolável leito de meu pai propor-me a união. Uma água pura me purificará desta mancha, lavando-me os ouvidos. Como poderia eu ser perverso, se, só por ouvir tais palavras, me julgo impuro?
Nota bem: é a minha piedade que te salva, mulher. Se, incauto, eu não tivesse sido preso por sagrados juramentos, a meu pai não deixaria de tudo isto revelar.
Assim, de casa me afastarei, enquanto Teseu estiver ausente do país, e a minha boca manter-se-á em silêncio. Observarei de volta com meu pai, de que maneira o olharão, tu e a tua senhora.
Sede malditas! Jamais me saciarei de odiar as mulheres, mesmo que alguém petenda que eu não cesso de o repetir, pois, de certo modo, elas são sempre perversas. Ensinem-nas a ser virtuosas ou deixem que eu as ultraje a toda a hora.
(Hipólito retira-se)


(Eurípides - Hipólito,
Trad. de Bernardina de Sousa Oliveira,
Textos Clássicos - 6,
inic, Coimbra, 1979, pp. 54-55)

8 comentários:

Unknown disse...

Não sería GAY o Hipólito?

:)

Rosalina Simão Nunes disse...

não creio que nesta tragédia fosse essa a questão, jotabê.

passo a citar alguns excertos da Introdução do texto que tenho estado a reler e que por aqui tenho andado a partilhar:

"A tragédia "Hipólito" é tida, desde a antiguidade, como uma das peças mais perfeitas da antiguidade, embora uma ou outra voz dissonante pretenda imputar-lhe falta de unidade."
(...)
"O contraste mais marcante que nela se observa é, sem dúvida, o de moderação/excesso."
(...)
"O filho de Teseu [Hipólito] oferece-nos a imagem de um grego educado no âmbito das artes: a ginástica e a música. Reconhecemos nele facilmente o jovem do séc. V: caçador, cavaleiro, tocador de flauta. Ele é o 'kalos agathos', o homem completo, o arquétipo propugnado pela educação ateniense do tempo de Eurípides.
Ingenitamente casto, o seu mundo dilecto é intacto e perfeito, longe dos homens: tem como sociedade a natureza e a deusa virgem, Ártemis. A coroa que a esta oferece, no início, e que confere o nome à peça, "Hipólito Coroado, é de flores colhidas num prado intocado pela mão do homem. Tanta pureza será a causa remota da morte do jovem, pois ele repudia categoricamente o amor, o que constitui irreflectida disposição.
É o ódio por tudo o que não é puro que o leva, quando lhe foram revelados pela Ama os sentimentos da madrasta, a pronunciar a violenta exprobação contra as mulheres."

exprobação essa que eu escolhi para este post.

vale a pena ler o texto na íntegra. digo eu, claro.

XX

wind disse...

Extraordinária esta parte de Hipólito, reportando-nos claro à época em que foi escrita.
Repara nunca li Eurípedes, estou a fazê-lo aqui contigo pela 1ª vez e estou a adorar.
Há que situar os extractos na época e não no agora.
No entanto houve uma parte que consegui quase transferir para os tempos de hoje: a mulher inteligente qualquer coisa (desculpa esqueci9.
É que é outraverdade.
Pela 3ª vez afirmo:Eurípedes era sábio:)

wind disse...

"Na verdade, é sobretudo nas mulheres cultas que Cípris faz nascer a perversidade..." É nesta passagem

Unknown disse...

Pronto, está desvendado, o Hipólito era perfeito demais, era esse o seu defeito.

:)

XX

Rosalina Simão Nunes disse...

"Há que situar os extractos na época e não no agora."

pois, wind. aqui não concordamos. eu consigo situar os extractos no agora.

e pegando no exemplo que deste, sendo Cípris a deusa do Amor, essa frase daria para uma tese. ;)



*entretanto eu vou continuar a publicar aqui mais alguns excertos. ainda estou a ler.

Rosalina Simão Nunes disse...

sabes o que me apetecia agora, jotabê? ficar o resto da noite a conversar sobre essa tal perfeição.
pena não ser possível fazê-lo. :)

Unknown disse...

Acho que a noite toda sería pouco, a perfeição não se deixa "apanhar" assim nas voltas para decidirmos(em conjunto claro), arranjar-lhe alguma imperfeição.

:)