domingo, 5 de novembro de 2006

-Uma mulher?!...Ah! então compreendo tudo.
- Não compreendes coisa alguma...Senão, diz o que compreendeste... - concluiu com estas palavras a um gesto meu.
- O que compreendi? - tornei. - O que qualquer compreenderia. Demais o problema é de fácil solução...Uma criatura fez-te esquecer tudo. Essa criatura foi uma mulher...Nova e bonita, não é verdade?
- Já te disse que o «animal» ficou na sala. Não viu portanto a minha companheira. A minha alma só, é que a viu...e a minha alma achou-a linda...
- Quando perderás esses ares misteriosos, quando deixarás de falar por enigmas - exclamei azedado. - A tua frase, apesar da sua nebulosidade pedantesca, significa que a mulher era nova e muito formosa...Aliás, não podia deixar de o ser...Falaste com ela durante umas poucas de horas...Percebo tudo, repito.
- E eu repito-te que não percebes coisa nenhuma...De que julgas que estivemos conversando?
- Ora...outro espinhoso problema - Disse superiormente. - Com uma mulher bonita, para ocupar toda uma noite, a matéria da palestra só pode ser uma: o amor e o galanteio; tudo isso habilmente misturado com modas, teatros e um bocadinho de maledicência.
- Bem te dizia eu. Não compreendeste nada. Se a conversação tivesse versado sobre tais futilidades, os meus nervos não a teriam podido suportar. Falámos doutras coisas...De coisas muito diferentes...de coisas muito semelhantes...
- Confesso...Na realidade não te compreendo...És impossível...absolutamente insuportável...Não te entendo...não quero entender...De que cor são os seus olhos?
- Negros.
- Os seus cabelos?
- Ébano.
- A sua pele?
- Branca de leite...a envolver um corpo tão belo, que nem parece obra da natureza...
- Apanhei-te! - bradei trinunfante - apanhei-te! Que entusiasmo! E és tu, meu sonso, que nem sabias se ela era bonita ou feia!? Ah! Ah!...Meu caro, apesar de tudo, és um homem...Não te podes subtrair à tua mísera condição...
- Não falou o homem; falou o artista.
- Bolas! - gritei-lhe. Serenei imediatamente, perguntando:
- E quem é a misteriosa dama?
- Não sei.
- Não sabes?!
- Não.
- Pois quê?! Não te mereço essa confiança?...Tão adiantado está já o namoro, que tens de fazer reservas?...
A essa palavra «namoro», Raul, com um gesto violento, largou-me o braço e exclamou asperamente:
- Cala-te...Ah! mas cala-te!...
- Não, antes que me digas o seu nome. É impossível que o ignores!
- Não o ignoro.
- Então para que afirmavas agora mesmo que não sabias quem era a misteriosa dama?...
- Sei o seu nome, mas não sei quem ela é.
- Ora essa...
- Saber quem uma pessoa é; é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos; saber como pensa, como executa. Numa noite, não se pode fazer tanto. A maioria das vezes, nem ao cabo de muitos anos se logra conhecer um companheiro de muitos anos. Por isso, à tua pergunta - «Quem é?» - respondi: - «Não sei.»


(SÁ-CARNEIRO, Mário de - Loucura...,
col. fantástico 3, Edições Rolim,
4ª edição, pp. 22-23)
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pois.

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