quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

outras árvores

um dia o rui saiu de casa e perdeu-se no caminho para a escola, tendo ido parar a um lugar cheio de árvores raquíticas, cinzentas, flores murchas, relva preta e, sobrevoando o lugar, bichinhos fedorentos e escuros.
vendo-se ali o rui sentiu medo. quis sair dali, ir embora, voltar à sua casinha...mas o pavor era tanto e tão forte que as pernas não conseguiam obedecer a essa vontade.
os seus olhos começaram a largar lágrimas: de início poucas e pequenas, depois, conforme a solidão o ia devorando, saíam violentas e em catadupa. também queria gritar...a voz não saía...também queria gesticular...os braços eram chumbo. então, os joelhos foram dobrando até tocarem o chão. ali ficou. assim ficou.
passaram um dia, dois e o rui naquela posição. tudo era sempre igual: as mesmas árvores raquíticas, cinzentas, flores murchas, relva preta e, sobrevoando o lugar, bichinhos fedorentos e escuros.
passados três dias, o rui ouviu alguém a dizer o seu nome: finalmente ia ser encontrado. quis gritar, mas a voz não saía. já não tinha medo e, contudo, a voz não saía da garganta.
quis levantar-se. não conseguiu: os joelhos já não eram os seus. pertenciam agora, também, à terra. e, de novo, o pavor invadiu o medo de nunca mais poder sair dali, entrando-lhe por todos os poros do corpo.
nesse momento sentiu que algo dentro dele crescia. algo que ele não conhecia...passaram-se semanas, meses, anos, e o rui lá continou.
já não era aquele menino que se costumava perder, quando ia para a escola. agora era mais uma daquelas árvores raquíticas, cinzentas que povoavam aquele lugar cheio de flores murchas, relva preta e sobrevoado por bichinhos fedorentos e escuros.

4 comentários:

Pedro Damião disse...

Assustadoramente belo este conto.
Quantos "ruis" nos passaram? Quantos mais irão passar sem que consigamos "olhar" para eles?

Pêndulo disse...

Não imaginas a surpresa que foi , para mim, ler este texto hoje.
Ainda ontem falava de algo similar.
Há cada coincidência.

Rosalina Simão Nunes disse...

é pitacajo. e se conseguiste ver este rui é porque ele, de facto, existiu.

a este perdi-lhe o rasto já há alguns anos. talvez, em vez de árvore, se tenha convertido em pedra. provavelmente. e sem raízes...andavam a cortar-lhas na altura em que foi meu aluno.

e o mais curioso nestas histórias é que quando lhas leio (aos alunos), eles identificam-se logo. muito interessante.

lamento que ultimamente não me seja possível tempo para ficcionar estas realidades. eram sempre momentos de reflexão: para mim e para eles. :)

beijoca.

Rosalina Simão Nunes disse...

que bom teres gostado, pêndulo.

como digo, em resposta, ao comentário anterior, esta história é ficção. total. mas o nome, o rui, era real.

para prender a atenção dos miúdos é quase sempre preciso criar, caso contrário eles deixam de se interessar por nós.

eu acredito em algumas coincidências. esta será uma delas.