quarta-feira, 13 de setembro de 2006

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Embora Gregor dissesse para si mesmo que nada de extraordinário se passava, ao tirarem apenas alguns móveis, teve de reconhecer que aquelas idas e vindas das duas mulheres, as pequenas exclamações, o arrastar dos móveis pelo chão tinham sobre ele o efeito de o aturdir imenso em todos os seus sentidos; e apesar de recolher a cabeça e as pernas, alongando-se no chão, opinou para si mesmo que não iria conseguir suportar tudo aquilo por muito tempo: elas estavam a ponto de lhe esvaziar o quarto; elas tiravam-lhe tudo de que gostava; já tinham levado a cómoda onde ele arrumava a serra de corte e as suas outras ferramentas; agora tiravam do soalho, onde criara raízes, a secretária onde estudara durante os tempos da escola de comércio, do liceu, mesmo quando fizera a escola primária...Já não conseguia pensar se as duas mulheres agiam com boas intenções, aliás já quase as esquecera, pois de tão cansadas como estavam, trabalhavam em silêncio, já não se ouvia senão o som dos seus passos.
Saiu para fora do seu esconderijo - as mulheres, na sala ao lado, tinham-se encostado momentaneamente à secretária para recuperarem um pouco o fôlego - , mudou quatro vezes de direcção, não sabendo ao certo o que iria salvar em primeiro lugar. Foi então que viu, pendurada na parede nua, a moldura com a imagem da mulher vestida só com peles; trepou com rapidez e colou-se ao vidro, que o segurou e o aliviou do calor escaldante do seu ventre. Esta imagem, pelo menos, que Gregor tapava completamente com o seu corpo, de certeza que ninguém lha iria tirar. Virou a cabeça na direcção da porta da sala, à espera do regresso das duas mulheres.
(in A Metamorfose, Franz Kafka,
trad. de João Crisótomo Gasco,
Colecção MIL FOLHAS, Público, pp. 55-56)
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...o normal despojamento dos outros pelas nossas coisas, quando nos tornamos naquilo que eles já não conhecem, nem dominam.

5 comentários:

Pedro Damião disse...

Os bens materiais, apesar de constituírem memórias ou até prolongamentos de nós próprios, não são mais do que isso: bens materiais. Por muito que nos custe desfazermo-nos deles. Aquela bola, uma boneca especial, o ursito de pelúcia, a cadeira de baloiço ou mesmo aquela fotografia de alguém que em tempos fez parte da nossa vida. Mas não passam de objectos. Mortos. O que vale mesmo é a memória que guardamos deles e da vida que já nos deram. Das alegrias e das tristezas. São as estórias que nos contam e que ninguém nos pode roubar.

Rosalina Simão Nunes disse...

claro, Xis, "o que vale é mesmo a memória". essa está sempre connosco, enquanto disso tivermos consciência. tens razão.

no entanto, este excerto é, para mim, mais que isso. retrata de modo fidelíssimo 'aquele' preciso momento em que alguém, pela nossa fragilidade momentânea, nos 'tira' o que é nosso, decidindo por nós, porque se acha nesse direito.

e isso, meu caro, é por de mais doloroso. nesse momento estamos frágeis, mas conscientes.

graças a deus..., que não sentiste como eu esse momento nas palavras de kafka.

um sorriso muito carinhoso.

MariaTuché disse...

Já é 5ª e hoje o Sol voltou gata :)

Aquele beijo e abraço

Rosalina Simão Nunes disse...

pois voltou, tuché. mas está um pouco envergonhado. ;)

Rosalina Simão Nunes disse...

bom dia, sabr. e, hoje, sou eu que digo: sei lá...