sábado, 7 de julho de 2007


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por Eça de Queirós, pp. 163-164, prosas esquecidas IV, Editorial Presença 1965


Num momento indubitavelmente perigoso, quando se abalam as fronteiras dos reinos; quando há oscilação na carta da Europa; quando se aproxima a época do derrubamento de instituições, e de transformações sociais; quando se precavêem nações com armamentos, invenções, organizações; quando a política de alianças suscita desconfiança às potências dominadoras; quando as pátrias vão ser revolvidas, como nos tempos geológicos se revolvia a terra; quando se agita a política de arredondamento de nacionalidades, de inutilidade de pequenos países, e a política de fraccionamento de estados, e de inconveniente das grandes extensões políticas, neste momento de perigo para Portugal, de luta para a Espanha, de miséria para ambos - a Folha do Sul ri-se!
Quando um ministério toma intimidades injustas, adopta imitações perniciosas, consagra relações desairosas com aqueles sistema doutrinário do governo espanhol, que não podendo sustentar-se pela liberdade, se sustenta pela ditadura; quando um ministério corteja e aplaude todo o sangue liberal que cobre o corpo inteiro do general Narvaez; quando adopta as ideias dos modelos de Espanha, que declaram que lhe é insuportável a liberdade, que é necessária a inquisição; quando esta união de factos, de ideias, de vistas cortesãs, inquieta os nobres espíritos, as consciências livres, os filhos daquela gente que teve fome e frio no cerco do Porto, e netos dos que se bateram pela independência da Península, e que viram as casa queimadas, as famílias assassinadas, as fortunas dispersas; quando se desenham no espírito estas negras dores - a Folha do Sul ri-se!
Já vêem que é o riso dos antigos bobos cortesãos, meios doidos e meio perversos.
A Folha do Sul ri-se mais por não sabermos aritmética, pela nossa obscuridade de ideias, por não sabermos geografia.
Ora nós sabemos mais aritmética decerto do que aqueles que apoiam o ministério destruidor das finanças.
Temos mais lucidez de ideias do que aqueles que, para combater princípios, procuram em todo o seu interior, no pensamento, no espírito, na alma, no coração, no instinto e na vontade, e só acham a chufa!
Sabemos mais de geografia decerto do que aqueles que apoiam um ministério que quer chamar a fronteira de Espanha até ao Oceano Atlântico!
A Folha do Sul ri-se, porque considera a pátria o tablado de uma forca.
Mas na imprensa combatem-se ideias, discutem-se princípios, debatem-se sistemas, argumentações, métodos, mas não se provocam risos. O lugar augusto das ideias não é o recanto cómico das risadas.
Quem tem a alma cheia de impropérios, de desonestidades, de cinismos violentos, não vem para aqui, para a imprensa. Para a imprensa vêm os que têm uma ideia, um princípio generalizador, uma alma criadora. Aqui não é o lugar dos que se riem.
Depois da traição, não venha o escárnio. Já bastante ferida está a liberdade, a fortuna popular, a administração pública; este pobre país não tem já a vitalidade dos fortes.
Os que aplaudem o imposto de consumo e a guarda civil, já lhe deram as punhaladas; não lhe atirem agora as imundícies!


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Assim escrevia Eça de Queirós sobre o Estado da Nação no Ano da Graça de 1867. Ainda assim actual...




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