quinta-feira, 13 de abril de 2017

Maria Helena da Rocha Pereira, uma vida

"Parte em silêncio, como em silêncio se fez sempre a sua vida. Discreta, com um rosto pontuado por uns óculos de lentes grossas, sob os quais se escondia um olhar acutilante, Maria Helena da Rocha Pereira desafiava toda a lógica dos consensos estabelecidos. Estamos familiarizados com o legado de sábios, mas temos dificuldade em conjugar aquela singularidade no feminino. Não é comum, mas é justo e verdadeiro afirmar que Portugal perdeu uma sábia." - Escreve Valdemar Cruz sobre Maria Helena da Rocha Pereira, no Expresso
Eu acrescentaria apenas, neste início de texto sobre a Professora, esta referência onde destaco a importância dos olhos azuis por detrás dos tais óculos de lentes grossas: ...acutilante, sim, mas azul. muito azul e brilhante e imenso. como brilhantes e imensos e intensos devem ser os mares que circundam a grécia. portugal viu partir. não perdeu. perdura no que nos deixou. e, mais do que sábia, alguém profundamente humanista.

Fui sua aluna. 

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Parte em silêncio, como em silêncio se fez sempre a sua vida. Discreta, com um rosto pontuado por uns óculos de lentes grossas, sob os quais se escondia um olhar acutilante, Maria Helena da Rocha Pereira desafiava toda a lógica dos consensos estabelecidos. Estamos familiarizados com o legado de sábios, mas temos dificuldade em conjugar aquela singularidade no feminino. Não é comum, mas é justo e verdadeiro afirmar que Portugal perdeu uma sábia.
O funeral realiza-se a partir das 15 horas de amanhã na igreja da Lapa, no Porto. Numa igreja como espaço último para onde todas as suas reflexões confluíam.
Maria Helena da Rocha Pereira nasceu no Porto em 1925, passou a ter uma presença mais assíduo no Porto após ter-se jubilado, em 1995, mas o Porto da infância de Maria Helena já só existia no imaginário desta mulher que foi também a primeira catedrática da Universidade de Coimbra, depois de ter lecionado na Universidade do Porto entre 1948 e 1957. Publicou ao longo da vida mais de 300 trabalhos, entre livros e artigos.
Era uma referência absoluta em Portugal e fora do país. Estudou, refletiu e publicou como poucos sobre as influências clássicas na literatura e cultura portuguesas. Grande filóloga, não se eximiu às polémicas e defendeu o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Gostava de falar, não obstante a imensidão da timidez de que parecia possuída. Com uma voz débil, engrandecia-se quando o momento se propiciava a discorrer sobre Camões ou Torga, Camilo ou Fernando Pessoa.
Se havia nela um fascínio – e coabitavam muitos – desembocava no encanto pela arte dos gregos antigos. Publicou mesmo um livro intitulado “Greek Vases in Portugal” e sempre derramou nos outros o prazer pela leitura e conhecimento dos grandes autores gregos e latinos, que lia no original.
Não por acaso, na antiga rua do Conde, hoje Cal Brandão, próxima da zona da Boavista, por entre os jardins da casa dos pais e os parques vizinhos, Helena, uma criança de quatro anos com um nome carregado de referências à mitologia grega, aprendia as primeiras letras num livro baseado numa Sátira de Horácio. Leu-o inúmeras vezes, mesmo se também gostava de bonecas e miniaturas de automóveis. Cresceu dividida entre a paixão pela matemática e a necessidade de dar resposta a uma espécie de chamamento para o estudo das línguas e das culturas clássicas. Venceram as letras e com isso se foi construindo, ao longo de décadas, uma obra sem par em Portugal e como poucas no mundo.

A importância do grego e do latim

Pouco dada a melancolias saudosistas, expressava em tempos perante o jornalista que assina este texto, um lamento por esta espécie de desprezo a que tem sido votado em Portugal o ensino do latim, e também do grego. Rigorosa nas palavras, fica em silêncio por instantes, para meditar e regressar com uma mais veraz constatação: “Diria antes ignorância. Essas disciplinas fazem muita falta. Já nem digo o grego, embora o grego, para mim, seja a mais bela das línguas. É muito afim da matemática. É uma língua de uma grande riqueza. Há na estrutura da língua qualquer coisa de geométrico que a aproxima da matemática”. Quanto ao latim, não tinha dúvidas em considerá-lo essencial ao estudo das línguas românicas em geral. Não apenas por poder contribuir para diminuírem os erros e as barbaridades cometidas no uso da língua, mas sobretudo “pelo que o latim significa, tal como o grego, de disciplina do espírito, do pensamento”.
Elemento preponderante de diversas academias e sociedades científicas, nacionais e estrangeiras, Maria Helena Rocha Pereira exerceu os cargos de vice-reitora da Universidade de Coimbra e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras. Distinguida com a Grã Cruz da Ordem de Santiago de Espada, recebeu numerosas distinções, entre as quais o prémio Ensaio do pen Clube Português, Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Eduardo Lourenço e Prémio Jacinto Prado Coelho.
Aos 25 anos fez a sua primeira grande viagem. Já formada e sem perspetivas de poder ensinar na Universidade, fechada ás mulheres pelo Portugal salazarista, opta por ir para Oxford. Passa ali um dos anos mais fecundos da sua vida. Antes da partida para Inglaterra viu-se na necessidade de fazer uma viagem de Lisboa para o Porto numa aeronave a hélice, muito barulhenta. Enjoou, achou tudo demasiado desagradável e durante anos e anos não voltou a entrar numa visão. Até um dia. Afastados os medos e preconceitos, voltou a voar. Praticamente deu a volta ao mundo. Se isso a fez perceber como eram as viagens à Grécia a preenchê-la de forma única, reservava para Roma um epíteto único. Porque, para Maria Helena, Roma era a mais bela das cidades. Provavelmente ainda será.

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