segunda-feira, 12 de novembro de 2007


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por Antero de Quental,
Tesouro Poético da Infância



Este livrinho, destinado exclusivamente à infância, dedico-o às mães e cuido fazer-lhes um presente de algum valor.


Convencido de que há no espírito das crianças tendências poéticas e uma verdadeira necessidade de ideal, que convém auxiliar e satisfazer, como elementos preciosos para a educação – no alto sentido desta palavra, isto é, para a formação do carácter moral – coligi para aqui tudo quanto no campo da poesia portuguesa me pareceu, por um certo tom ao mesmo tempo simples e elevado, ou ainda meramente gracioso e fino, poder contribuir para aquele resultado, em meu conceito, importantíssimo.


Destina-se pois este volumezinho sobretudo à leitura doméstica. Talvez que não fosse também descabido nas escolas de primeiras letras: mas receio que a simplicidade quase sempre pueril dos assuntos e a tenuidade do estilo pareçam a muitos mestres destoar daquela gravidade pedagógica, que, em seu entender, é atributo do ensino. Direi que pela minha parte, não o entendo assim: penso, com Froebel e João de Deus, (e com a razão e a natureza) que o tipo do ensino é o maternal, o que segue passo a passo as tendências naturais e acomoda o método e doutrina à condição peculiar do espírito infantil. Para uns entezinhos, em quem tudo é movimento e imaginação, a escola, se não for jardim, será só prisão, a doutrina, se não for encanto, será só tortura.


(...) A poesia é o ideal percebido instintivamente.



É por tais motivos que a poesia constitui o instrumento por excelência acomodado para desenvolver, e até evocar, na alma infantil, aquele sentimento do bem e do belo, sem o qual, mais tarde, a própria rectidão do carácter degenera numa dureza intolerante e estreita, a própria penetração da inteligência numa agudeza sofística e estéril. Em tempos primitivos, foi a poesia o veículo da doutrina e a linguagem própria das coisas ideais, para a humanidade ainda infante: sê-lo-á sempre para a infância, porque cada criança representa verdadeiramente, na sua constituição mental e psicológica, um resumo exacto daquela primordial e incipiente humanidade. A doutrina terá sempre de lhe ser revelada em forma de mitos, de exemplos e de imagens – isto é, em forma não só de poesia, mas de poesia simples e, na sua essência, primitiva.


(...)


Em compensação, recorri, quanto me foi possível, à poesia popular. O povo é uma grande criança colectiva, é o eterno infante...No seu conceber as coisas, no seu sentir, no seu dizer, estão ainda presentes, como o estão nas crianças, aquelas faculdades intuitivas que presidiram, há muitos séculos, ao alvorecer do espírito humano e produziram os mitos, as lendas, os cantos heróicos, com que, no seu berço, se embalou tão poeticamente a humanidade. Dizer popular é pois dizer infantil. Todos têm notado como as crianças se dão bem com a gente do povo. É que uns e outros são simples. E todos nos recordamos do prazer delicioso com que escutávamos, na meninice, os contos maravilhosos ou os romances e cantigas com que alguma criada velha nos sabia encurtar, como por encanto, as horas largas dos serões de inverno. É que naquelas histórias e naqueles cantares, encontrava a nossa imaginação a forma exacta dos seus indistintos devaneios; o nosso sentimento, a expressão natural das suas vagas aspirações. Aqueles eram os símbolos próprios para a nossa ingénua concepção do ideal; e se os soubéssemos compor, assim é que os teríamos composto. A voz do povo parecia-nos o eco do nosso próprio pensamento.

(...)


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Deliciosa esta Advertência com que Antero de Quental nos presenteia...
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