segunda-feira, 3 de setembro de 2007




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por Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto, pp. 78, 79, Tinta da China


O facto de as consequências do terramoto terem confirmado uma visão pessimista da natureza humana é, pois, o que mais impressiona alguns autores, entre eles um certo António dos Remédios, numa Resposta à Carta de Jozé de Oliveira Trovam e Souza:


Quando ha peste ainda naõ falta quem assista aos enfermos com o risco de ficar contagiado, quando ha fome tambem ha quem se prive de alimento para acudir ao faminto; quando ha guerra naõ falta quem arrisque a vida propria por salvar a do amigo, Pay, ou parente; mas na occasião do terramoto se verificou aquelle adagio atéqui pouco verdadeiro, de que naõ ha Pay por filho, nem filho por Pay.


Há algo neste parágrafo que merece uma paragem para um comentário breve, porque aquilo que ele tenta de forma muito resumida é avançar com uma hipótese de explicação para estas atitudes egoístas - no sentido mais próprio de «preservação do eu». E, mais notável ainda, essa explicação radica na própria natureza do terramoto enquanto catástrofe diferente de todas as outras, catástrofe pura porque catástrofe descontextualizada.

Em todas as outras ocasiões das misérias humanas há quem mostre o pior, mas também o melhor, da nossa natureza. Na peste, na guerra, na fome, há quem se coloque em risco para ajudar o próximo; no terramoto não. Mas o que todas as outras calamidades têm de comum entre si, e de distinto do terramoto, é serem prolongadas no tempo, ou melhor: é terem um contexto. Num contexto é possível fazer escolhas. Mas o sismo chega de repente; não se sabe que vai começar nem quando acabará - e os mesmos crentes com o coração cheio de amor caridoso que se encontravam na missa momento atrás tiveram então de fazer as suas escolhas munidos apenas do mais básico dos seus corpos e consciências - e não de sistemas morais desenvolvidos durante milénios ou descritos com filosofia rebuscada. É essa a diferença, e por isso o terramoto é tão verdadeiro: revela os humanos despidos de cultura, que é o seu contexto.

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Salvaguardando as devidas distâncias e metaforizando este excerto, há, sem dúvida, similitudes com a actuação governamental, em particular, com o ministério da educação.




2 comentários:

Alien8 disse...

De acordo com o comentário ao texto. Menos de acordo com o texto: mesmo em situações de terramoto e equiparadas, há quem procure salvar outros, e não apenas a si próprio. Há "Pay por filho", seguramente.

Um beijo.

Rosalina Simão Nunes disse...

Pois, Alien, o comentário. E o post que fiz a seguir só vem dar razão ao meu comentário.

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E sabes...O que mais me angustia (e eu nem sou nada de angústias...) é a consciência do mal que esta gente está a fazer à geração que está a ser formada, agora, nas escolas.

Quanto ao texto em si, pois, talvez tenhas razão. Prendeu-me este excerto pela sua quase crueldade, mas pelos relatos, bastante credíveis. Gostava de poder, como tu, acreditar que assim não seria. Mas também espero jamais ter de vivenciar. Enfim.