domingo, 4 de fevereiro de 2007



Eugénio de Andrade, o poeta do amor


Quase nada

O amor
É uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
Memorizei estes versos de Eugénio de Andrade quando era ainda menina e moça. E naquela altura eu acreditava que o amor podia ser dito por palavras. Por isso não percebia que fosse uma ave a tremer / nas mãos de uma criança...
O amor tinha de ser dito para se conhecer. E mesmo sem perceber as palavras, memorizei-as...provavelmente, porque as senti belas.
Foi, certamente, o instinto que me fez guardá-las.
Hoje, passados alguns anos da minha meninice, quando a vida já me ensinou o amor, agradeço a Eugénio de Andrade a memória daqueles versos.
Afinal, o amor tem o sabor das manhãs claras, sem voz.
Ao reler os poemas de Eugénio de Andrade para escrever estas linhas, fica a vontade de reescrever, aqui, cada poema lido, todos os versos sentidos. Do mesmo livro do Quase nada, em epígrafe, encontramos, em Mar de Setembro, cinco versos que nos despertam para o princípio da vida: a criança:

Passo e amo e ardo.
Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
levo comigo uma criança
que nunca viu o mar.

É a ave, são as manhãs limpas, é a voz, a criança que nunca viu o mar...é, sobretudo, o amor.

Eugénio de Andrade é reconhecidamente o poeta do amor:
Trata-se de um dos maiores líricos da literatura portuguesa, que é também o grande poeta do amor no nosso século XX. (António José Saraiva);
Nunca o amor encontrou em Portugal uma voz tão subtil e apaixonadamente imaginativa, capaz de contrastar os mínimos imponderáveis, uma voz em que a plenitude é nostálgica, a ardência vital desesperada e ao mesmo tempo triunfante, sempre arrebatadamente humana, mas também sempre sensualmente dominadora das formas, dos ritmos e das imagens mais deslumbrantes. (António Ramos Rosa)

Muitas outras opiniões aqui poderiam ser citadas, e todas nos sintetizariam a voz do poeta do essencial concreto (Manuel Antunes).

E pode ser essencial perceber o que é (era...) o Outono, numa altura em que as estações perdem as suas fronteiras. Eugénio de Andrade também nos canta o Outono:

Adagio

O Outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria e sem sentido.

Estas palavras assim escritas foram colhidas como se fossem frutos ou flores. Depois de lidas, sentimo-las como dádivas e passamos a estar ali com elas, naqueles versos. Identificamo-nos com eles, são nossos e sorrimos.

(...)

Mas tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves
. - in Poema à Mãe

Quantos não gostariam de ter a ousadia de ler este poema aos pais para que eles percebessem, definitivamente, que o mundo lá fora está à espera!?...Afinal, a traição é igual à de todos os outros meninos: No mais fundo de ti, / eu sei que traí, mãe. / Tudo porque já não sou / o menino adormecido / no fundo dos teus olhos.

A poesia de Eugénio de Andrade tem, de facto, como disse José Tolentino Mendonça, uma luz capaz de seduzir um coração e que nunca nos abandona.

É, por isso, importante saber quem é este encantador de palavras, esta voz que, quando ouvida, nos envolve a alma.

Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, uma pequena aldeia da Beira Baixa situada entre o Fundão e Castelo Branco. É filho de uma família de camponeses.
A sua infância foi passada com a mãe. O pai pouco esteve presente...
Entrou para escola da aldeia natal aos 6 anos. Um ano depois mudou-se para Castelo Branco e em 1932 foi viver para Lisboa, onde esteve durante 11 anos.
Em 1939 publicou o seu primeiro poema, Narciso, e foi nesta altura que começou a assinar os seus trabalhos com o pseudónimo.

Viveu ainda em Coimbra e em 1950, por motivos de trabalho, foi residir para o Porto, cidade onde ainda hoje mora.*

Eugénio de Andrade alcança o sucesso com a publicação de As Mãos e os Frutos, em 1948. A partir desta data, inicia-se uma carreira especialmente rica em poesia, mas também com produções nos domínios da prosa, da tradução e da antologia. Durante a sua vida tem feito diversas viagens; participado em vários eventos e travado amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira.

Já publicou mais de duas dezenas de livros de poesia. Obras em prosa, antologias, álbuns, livros para crianças e traduções para português de grandes poetas estrangeiros.

Eugénio de Andrade é, realmente, a par de Fernando Pessoa, o poeta português mais divulgado no mundo. A sua obra tem sido, por outro lado, objecto de estudo e reflexão por parte de escritores e críticos literários, quer estrangeiros, quer portugueses.

Por isso, o Prémio Camões que lhe foi atribuído no ano de 2001 não foi surpresa alguma. Aliás muitas foram as vozes que o definiram como relativamente tardio. O próprio poeta a propósito desse distinção afirmou. Devia ter vindo na altura de As Mãos e os Frutos, quando ainda era novo.
O poeta dedicou o prémio a todos os que me querem bem. Aos leitores da minha poesia, que parecem ser muitos. Aos meus amigos... e muitos dos seus amigos são desconhecidos. Porque a poesia também serve para isso. Para fazer amigos.

*OBSERVAÇÃO
Este texto foi elaborado durante o Ano Lectivo de 2003/04, portanto, antes do desaparecimento do poeta (13 de Junho de 2005, Porto).
(retrato do poeta: pintura de Alfredo Luz)

2 comentários:

Manel disse...

É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

- nunca é demais ler o poeta do Amor, pois quanto mais vivemos mais aprendemos a amar.

Rosalina Simão Nunes disse...

em absoluto, manel.