- É chegado o momento. Vais acreditar...Vou-te convencer da grandeza sobrehumana do meu amor!...Escuta-me: não se ama uma velha...uma criatura enferma...uma criatura disforme...O amor que devia ser um sentimento todo da alma, é um sentimento só dos sentidos. Ama-se porque é bom amar...esvairmo-nos na derramação de um líquido peganhento...asqueroso...o amor é uma distracção...como o teatro...como as festas de igreja...Ama-se uma mulher porque ela é linda...por causa dos seus cabelos, dos seus olhos, da sua boca...de todo o seu corpo...Pode-se amar uma mulher feia pelos seus vícios estonteantes, perversos...Ah! mas ninguém ama um corpo sem fogo, um corpo de carne mole e repugnante; ninguém beija um rosto sem nariz...uns olhos cegos, uns lábios contraídos na crispação de uma ferida mal cicatrizada...Pois bem! Fosses tu cega, fosse o teu corpo todo uma chaga e eu amar-te-ia com o mesmo amor...com mais amor!...Sim! Marcela, eu amo-te acima de tudo!...Ah! eu gosto dos teus beijos...da tua carne...gosto de enlaçar as minhas pernas nas tuas...Mas isso que vale?! O que amo, é a tua alma e essa, seja feio o corpo, será sempre bela...amá-la-ei sempre...sempre...sempre!...Não me acreditas...não crês o meu amor tão forte...Vou-te provar que não minto...Vou-te dar a maior prova de amor...Beija-me...dá-me a tua boca...preciso de coragem...de muita coragem...Ouve-me, compreende-me, e não tenhas medo: Vou despedaçar a obra-prima do teu rosto...torná-lo uma cicatriz hedionda, onde não se conheçam as feições...sem olhos...sem lábios...Vou queimar os teus seios...sujar para sempre a brancura imaculada da tua carne...E assim, um monstro repelente, continuarei a amar-te, amar-te-ei muito mais, porque todo o tempo será para ver a tua alma...a tua querida almazinha...Não tenhas medo...não grites...não grites...Vais ser muito feliz...Vamos ser muito felizes...De hoje em diante, nenhuma nuvem obscurecerá o céu azul da nossa vida...Já não recearei o tempo...o Tempo não envelhece um corpo chagado...a morte não o desfeia...Que os anos passem...que venha a morte...Nada nos importará...nada...Vês...vês como vamos ser venturosos?...
E, numa alucinação, num delírio de loucura, correu a uma prateleira...pegou num frasco...
Marcela, terrorizada, ainda sem perceber, tentava fugir, encontrar uma saída, chorava e gritava...
Raul, pondo-se em frente da porta, bradou:
- Não fujas...não chores...Isto é vitríolo...vou-to lançar ao rosto...espalhá-lo pelo teu corpo...Vou-te matar o corpo para dar mais vida à alma...vou-te dar a eternidade...fazes parar o tempo...Espera...não grites...não tenhas medo...nem faz doer...nem faz doer...E mesmo que fizesse...É para seres feliz...muito feliz...
A desventurada fugia diante dele num grande desvairamento. Raul, por fim, agarrou-a. Preparava-se para lhe atirar o líquido, exclamando enraivecido:
- Miserável! És como as outras...Gostas de ser bonita...Gostas de excitar os homens...Devassa...Devassa!...vou escangalhar toda a tua beleza...vais ficar horrorosa...Todos fugirão de ti...ninguém te quererá...mas eu quero-te...quero-te...Meu amor...Meu amor!...
Marcela, num arranco supremo, cravou os dentes na mão que empunhava o frasco. A dor foi tão forte que Raul o largou. Caiu no sobrado, porém não se quebrou nem se desrolhou.
Marcela pôde então ganhar a saída, fugir.
O escultor, como que pregado ao solo, não passou a porta. Com os olhos desmesuradamente abertos e os cabelos em pé, olhava como um sonâmbulo para o corredor por onde Marcela tinha desaparecido...ouvia os seus gritos alucinantes...
Com todo este ruído, os criados desceram de tropel. Sentindo os passos, Raul saiu da sua abstracção; ululou um uivo despedaçador...apanhou o frasco...emborcou-o...bebeu dum trago todo o seu conteúdo.
Quando os criados entraram no atelier, viram-no contorcido no estertor de uma agonia horrível, convulcionado nas dores cruciantes do seu peito, dos seus intestinos queimados, arrepanhados pelo líquido corrosivo...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Marcela esteve à morte com uma febre cerebral, receou-se pela sua razão. Hoje é feliz. Refez a sua vida; tornou a casar, é mãe de dois lindos gémeos. Vive em Roma. O seu marido é o primeiro secretário da nossa legação.
Ela foi sempre uma criança. As crianças esquecem tudo...depressa...
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Cheguei ao fim. Não consegui explicar o inexplicável, tenho a certeza. Por isso mesmo me abstenho de tirar conclusões. Quem ler o escrito que as tire, se quiser. Peço unicamente que antes de exclamarem: - «Raul Vilar foi um doido...que conclusões tirar da loucura?...?» - meditem um pouco em tudo quanto leram.
Por mim, apenas digo:
Raul horrorizava-se com o Tempo. Era uma das suas obsessões mais características. Ah! na realidade, como é desolador pensar-se: «Hoje é o dia 26 de Junho de 1910 - nunca viverei outro dia igual a este, nunca mais farei o mesmo que fiz hoje...Um segundo não se repete em cem mil anos!...»
Raul queria provar o seu amor. Para isso decidiu praticar um crime. Todos o condenam, decerto. No entanto, o que ninguém pode negar é que a sua prova, embora dum egoísmo atroz, não fosse a mais concludente, a maior prova de amor, como lhe chamava. «Só se ama por interesse. Não se ama um corpo disforme». Ele possuía uma criatura ideal; pois bem, destruiria toda a sua beleza. O seu amor não diminuiria...pelo contrário: Morto o corpo, amaria a alma só com a sua alma.
Isto tudo são loucuras, sei perfeitamente. Apenas no cérebro dum doido podem nascer tais pensamentos. Nós, os «homens de juízo», não pensamos nessas coisas, não pensamos em muitas coisas e aceitámos a vida tal como ela é, tal como se convencionou que ela fosse; porque nos habituámos a ela. Raul não se habituou. Foi um desgraçado.
«É bem digno de compaixão esse pobre suicida» - concordam todos. Mesmo se tivesse sido um criminoso, eu diria:
- Peço não guardem da sua memória uma náusea, não clamem, desviando os olhos das duas estátuas - «Assassino!» - Lembrem-se: foi um louco. Tenham piedade...muita piedade desse desventurado. - «Era um doido» - proclamaram unanimemente.
Os doidos são irresponsáveis, diz o Código...
A loucura... A loucura...
Lisboa, maio-junho 1910
in Loucura, de Mário de Sá-Carneiro
1 comentário:
Aflitivo. Ganhando ao tempo, suicidou-se. Falo de MSCarneiro, não do outro (que há por aí tanta história por contar...).
Que poderia querer mais o nosso poeta inquieto? Obg R.
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