terça-feira, 29 de agosto de 2006

"a minha cor de mente..."




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Ei-los de regresso, os meus hóspedes, os meus familiares. Já está reparada a brecha aberta nas minhas defesas pelo admirável golpe de espada de Neville. Volto a ser eu próprio e rejubilo trazendo à cena tudo aquilo que Neville ignora de mim. Olhando através das janelas e afastando as cortinas, digo para mim mesmo: «Aquilo que estou a ver não lhe daria prazer, mas a mim enche-me de alegria» (servimo-nos dos nossos amigos para nos avaliarmos a nós próprios). A minha vista abrange aquilo que Neville jamais alcançará. Na estrada gritam canções de caça. Celebram alguma corrida de cães. Os rapazinhos de barretes na cabeça que se voltavam todos ao mesmo tempo quando a carruagem dobrava a esquina, dão palmadas nas costas e gabam-se das suas proezas. Mas Neville, evitando cuidadosamente qualquer contacto, furtivo como um conspirador, regressa apressadamente ao seu quarto. Vejo-o afundar-se na poltrona baixa e contemplar o fogo que por um momento assume a aparência da solidez arquitectural. «Se a vida, pensa ele, pudesse manter esta ordem, esta permanência» - pois acima de tudo ele deseja a ordem e detesta o meu desmazelo byroniano. Por isso corre a cortina e fecha a porta à chave. Os seus olhos enchem-se de desejo e lágrimas (porque ele ama; a figura sinistra do amor presidiu ao nosso encontro). Agarra o atiçador de um golpe destrói a momentânea solidez do edifício de carvão incandescente. Tudo se modifica. Tudo passa, a juventude e o amor. O barco que flutuava sobre a abóbada de salgueiros passa agora debaixo da ponte. Percival, Tony, Archie ou outro qualquer partirão para a Índia. Não nos voltaremos a ver. E Neville estende a mão para o caderno - um belo volume encadernado com papel mosqueado - e febrilmente escreve longos versos com o estilo do poeta que de momento mais admira.

Eu prefiro vaguear, debruçar-me à janela, escutar. Volto a ouvir o alegre coro dos rapazes. Agora estão a partir louça, uma tradicional manisfestação de alegria. O coro é como as águas de uma corrente escalando as rochas, tomando de assalto as velhas árvores e precipitando-se no fundo dos abismos com um abandono magnífico. (pág. 74)


(in As Ondas - Relógio d'Água - de Virginia Woolf)

4 comentários:

Anónimo disse...

Então, o que achas da cor?

Rosalina Simão Nunes disse...

demasiado contemplativa, passiva.

Anónimo disse...

Não concordo, acho os “meus” parágrafos lambidos pela alternância do movimento, da partilha e da solidão, alude aos sentimentos nobres do respeito e do amor e proseia a divagação do quotidiano. Os teus, bem, lembram-me alguns dos sete pecados capitais, preguiça e luxúria, sendo que o segundo, aquela preguiça mental, quase dói quando se lê.
Prefiro a minha pág.
Mas Virgínia Woolf é Virgínia Woolf, e tudo aquilo que dizemos é ficção, portanto…


:)

wind disse...

Também prefiro vaguear...;)