era só um miúdo
na minha terra havia um homem que não tinha um dos olhos. por isso toda a gente o tratava por zarolho. toda a gente, não. os adultos só o faziam quando ele não estava presente e, mesmo assim, só aqueles que por um motivo ou outro não gostassem dele.
na minha terra havia um homem que não tinha um dos olhos. por isso toda a gente o tratava por zarolho. toda a gente, não. os adultos só o faziam quando ele não estava presente e, mesmo assim, só aqueles que por um motivo ou outro não gostassem dele.
eu e os meus colegas da escola costumávamos esperar que ele chegasse de autocarro para depois o perseguirmos. nessa perseguição íamos sussurrando: z, z, z, zar, zaro, zarolho... e depois desatávamos a correr, porque ele, danado, punha-se a atirar-nos pedras e a dizer que um dia se havia de vingar. eu, do grupo, era aquele que dava menos importância ao homem. achava piada à atitude dele: era tão grande e agia como uma criança. no entanto, os meus colegas, todos os dias, inventavam alguma história nova para arreliar o pobre do homem...
a pior de todas foi quando eles decidiram que o filho do tal homem também devia ser gozado. eu ainda tentei fazê-los mudar de ideias, mas eles nem me quiseram ouvir.
e foi assim que tudo se passou: no dia de uma semana qualquer, quando o miúdo ia para casa sozinho, resolveram acompanhá-lo. éramos quatro (acabei por entrar na “brincadeira” já que fazia parte do grupo...). um ultrapassou-o, dois ladearam-no e eu caminhava atrás. depois de cinco minutos, em silêncio, apressando o passo, quando ele o fazia e desacelerando-o, quando desesperadamente tentava escapar, o pobre rapaz foi ouvindo, enquanto aguentou, as nossas ‘bocas’.
a certa altura, não suportando mais, parou, agarrou em pedras e começou a atirá-las. como éramos quatro a sua tentativa desesperada de defesa não deu resultado: agarramos-lhe imediatamente nas mãos. e os meus colegas empurraram-no, começando-lhe a bater. fiquei paralisado. gritei. ninguém me ouvia. deitei-me, então, sobre o miúdo. e só assim os outros pararam. olharam para mim com ódio e chamaram-me cobarde. não me importei nada. estava preocupado com aquele ser tão pequeno e que a chorar tremia nos meus braços. peguei nele ao colo e levei-o para sua casa.
dias mais tarde, e preocupado porque não o tornara a ver na escola, fui lá a casa. quando cheguei estava tudo em silêncio. as pessoas estavam vestidas de preto. avancei por aquela pequena multidão e no fim dela estava uma caixa e dentro uma criança: o filho daquele homem tão grande que, àquele canto sentado a chorar, parecia tão pequeno...
quis saber como tinha sido...disseram-me que se tinha matado.
fiquei horrorizado. naquele momento odiei-me a mim próprio. tive vontade de matar os meus colegas.
agora, e passados que são tantos anos, tenho pena desses colegas... nunca mais fui capaz de olhar para eles. de mim continuo com ódio.
estou sozinho na vida. naquele dia aprendi que jamais poderia fazer alguém feliz!
2 comentários:
muito pelo contrário...:(
tens razão, cristina. :)
mas de certa forma esta é também uma história quase possível de ter existido.
não sei se, de facto, aconteceu, porque perdi o rasto ao protagonista. criei-a, num ano, em que tinha um aluno que cometia crueldades sem se aperceber...muitas vezes levado pelos outros. um grupo externo à escola.
na altura em que a li na aula, o moço ficou com a lágrima no olho. :)
a história é triste. tens razão. mas aquele momento foi muito bonito.
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