quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Raul era dotado de um bizarro carácter: ora alegre, ora triste; ora falador - sem poder estar um minuto calado - ora conservando-se largo tempo silencioso, imerso em profunda meditação. Por coisas insignificantes, assaltavam-no às vezes terríveis cóleras: lembro-me de que um dia, só por não ter adoptado uma opinião sua, me atirou com um insulto obsceno, acompanhado dum pesado tinteiro de vidro que, se me acertasse, podia muito bem dar cabo de mim. Mas as suas cóleras logo abrandavam; a chorar, pedia perdão. Eu perdoava-lhe sempre...
Frequentemente tinha ideias esquisitas, duma esquisitice sinistra. Por exemplo, uma noite - depois dum dos seus costumados períodos de mutismo - exclamou de súbito:
- Gostava que morresse toda a gente...todos os animais e que só eu ficasse vivo...
- Para quê? - perguntei espantado.
- Para experimentar o medo de me ver completamente só, num mundo cheio de cadáveres. Devia ser delicioso! Que calafrio de horror!...
Estas suas excentricidades, como eu já as conhecia, faziam-me sorrir; ou antes, ouvindo-as, esforçava-me por sorrir. Com efeito, o rosto de Raul acompanhava essas divagações com uma expressão de tal modo singular, os seus olhos brilhavam com tamanho fulgor, que o meu coração se confrangia num vago pressentimento da loucura. Esforçava-me por mudar de conversa, o que nem sempre conseguia.
Foi a ele que mostrei os meus primeiros trabalhos literários. Geralmente elogiava-me, acrescentando todavia:
- Gabo-te a pachorra, homem! Para que diabo te servirá isso?
- Para nada - respondia-lhe de bom humor. - É um entretimento que não faz mal a ninguém...e para mais um entretimento barato: o papel custa a vintém o caderno; a tinta e os aparos, também não são coisas de arruinar...
- Para entretimento... - murmurava ele com um sorriso desdenhoso - Ah! Tu precisas-te entreter...Para isso escreves; isto é, trabalhas. Mas, meu caro, «entreter» significa passar o tempo. Ora o tempo passa acelerado em demasia; não necessita de impulsos. Os homens deviam procurar «entreter» o tempo, e não entreterem-se a si...Eu é isso que faço...Penso no passado, revivo os dias que passaram...Assim, levanto uma barreira entre o presente e o futuro. O futuro é porém um óptimo saltador...salta todas as barreiras, vai-se tornando no presente e eu pouco resultado alcanço...Escreves para não te aborreceres...Ah! como seria feliz se me conseguisse aborrecer!...
Estas e outras tiradas absurdas, incomodavam-me. No entanto, habituado a tudo o que viesse do meu amigo, suportava-as: ouvia-as e não as discutia. Nos seus momentos de serenidade, falávamos num conversar ameno, principalmente de arte, de literatura e de teatro. As suas ideias eram então a de um ente normal, até que - de súbito - lá aparecia a nota extravagante.
(SÁ-CARNEIRO, Mário de - Loucura...,
col. fantástico 3, Edições Rolim,
4ª edição, pp. 15-16)
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"Mas, meu caro, «entreter» significa passar o tempo."
"...«entreter» significa passar o tempo."
"...significa passar o tempo."
"...passar o tempo."
"...o tempo."
fugir do tempo?!

2 comentários:

Anónimo disse...

Para ti um poema de Olga Roriz, sobre o TEMPO e algo mais...

DESLIZAR o tempo sobre o tempo...
DESCALÇAR os pés sobre um chão mole...

PROCURAR um fim qualquer...

DORMIR sobre os diamantes...

SONHAR com as palavras sem sentido...

ENCONTRAR um olhar distante com um ouvido atento...



DIZER o que se quer, para que fique dito para sempre...

SABER que ontem já passou e amanhã ainda está para vir...

REPOUSAR sobre a vida das flores e o voo nupcial...

DESCOBRIR que há dois tipos de pessoas, os narcisos e os gladíolos...

ACREDITAR nos buracos de vermes...

ANDAR para que a calma restabeleça a ordem dos sentidos...

TRAZER tudo o que até agora se guardou...

DEVOLVER as cores às noites sem fim...

CORRER com uma mão livre e um livro debaixo do braço...

APRENDER com as crianças que o tempo é subjectivo...

VER a história de cada um de nós esvair-se como se fosse uma ampulheta...

PROCURAR um fim qualquer...



NÃO DESLIZAR o tempo sobre o tempo...

NÃO DESCALÇAR os pés sobre um chão mole...

NÃO PROCURAR um fim qualquer...

NÃO DORMIR sobre os diamantes...

NÃO SONHAR com as palavras sem sentido...

NÃO ENCONTRAR um olhar distante com um ouvido atento...

NÃO DIZER o que se quer, para que fique dito para sempre...

NÃO SABER que ontem já passou e amanhã ainda está para vir...

NÃO REPOUSAR sobre a vida das flores e o voo nupcial...

NÃO DESCOBRIR que há dois tipos de pessoas, os narcisos e os gladíolos...

NÃO ACREDITAR nos buracos de vermes...

NÃO ANDAR para que a calma restabeleça a ordem dos sentidos...

NÃO TRAZER tudo o que até agora se guardou...

NÃO DEVOLVER as cores às noites sem fim...

NÃO CORRER com uma mão livre e um livro debaixo do braço...

NÃO APRENDER com as crianças que o tempo é subjectivo...

NÃO VER a história de cada um de nós esvair-se como se fosse uma ampulheta...

NÃO PROCURAR um fim qualquer...



CORTAR a meta...

CORRER o risco...

CHEIRAR a coca...

RASGAR a pele...

QUERER amar...

CRIAR o espaço...

VOLTAR a vê-lo...

PEDIR de vida...

ESTENDER os olhos...

FECHAR os olhos...

TROCAR as voltas...

DIZER que não...

ABRIR a porta...

FICAR sozinho...

SOLTAR o filho...

IR ao acaso...

MATAR o tempo...

LER-lhe nos olhos...

DEIXAR passar...

TER para dizer...

LEVAR consigo...

SABER guardar...

GOSTAR de rir...

PODER fugir...

ESQUECER o fim...

CONTAR a história...

PERDER o rumo...

OUVIR falar...

ACRESCENTAR...

9 de Junho 97

Olga Roriz

PS.:Desculpa o abuso da usurpação do espaço

Um resto de bom feriado

Rosalina Simão Nunes disse...

estás desculpado, claudynius.

obrigada.